28.3.14

digitar: habilidade fundamental ao professor

Imagem de Will Leite


Havia numa cidade grande uma professora, aliás uma rede de professores, que tinham pouco tempo para pesquisar e planejar suas aulas, pois tudo se resumia a apenas 135 minutos semanais para tais tarefas, tempo de uma uma partida e meia de futebol.
Falando em futebol, nesta cidade, no ano da Copa de 2014, o prefeito e seu secretário de educação resolveram implantar um sistema regido pela tecnologia para substituir o velho diário de papel. O argumento para isso é que o diário de papel faz mal ao meio ambiente, não é sustentável. Sim, a maioria dos professores concordam com isso. Apesar, que dizem as más línguas que os professores terão que imprimir após a digitação completa e também que o lixo eletrônico é bem mais preocupante do que o consumo de papel.
Essa bonita ideia, não está mais ocupando espaço físico como os diários de papel, mas o espaço de um tempo precioso do professor, o espaço para invenção de conhecimento e pesquisa. Pois professor, nos seus 135 minutos semanais, cria, inventa, pesquisa para levar aulas interessantes aos seus alunos. Entretanto, os manda-chuvas desta cidade estão querendo achatar o trabalho do professor e transformá-lo num mero digitador. 
E foi isso o que aconteceu, no ano de 2015, conhecimento fundamental para avaliar professores no concurso desta cidade foi a demonstração na teoria e na prática se eles sabiam datilografia/digitação e não mais teorias sobre o desenvolvimento humano, legislação educacional, novas metodologias e formas de avaliação.
E anos depois, foi espalhado pelos quatro cantos do país, na tv e nos jornais, que uma doença terrível assolou os professores desta cidade, pois de pesquisadores e inventores de aulas interessantes, passaram a não controlar mais seus dedos e, por todo lado e em todos os lugares, mexiam-os incessantemente. 

27.9.13

ridículo





Sim, eu já entrei em um ateliê de gravura. Lá fiquei encantada com o cheiro da tinta,com  as grandes bancadas para se trabalhar, com os materiais e as ferramentas. Lá o tempo fluía.  O tempo permitia saborear cada momento daquela experiência com a arte. 
Sim, já entrei numa sala de aula de escola pública. Hoje é lá que habito. Um dia, entrei com o plano e o desejo de compartilhar o que vivi em um ateliê e o encantamento que a gravura produz.
Lá não havia cheiro de tinta, mas crianças com os olhos atentos e curiosos. Não havia também bancadas, mas 35 corpinhos espremidos em um espaço pouco adequado.
Apesar disso insisti em levar meu plano adiante. Não havia madeira para todos, mas havia a possibilidade de levar um pedaço grande e todos experimentarem, mesmo que por alguns minutos. E foi isso que aconteceu. Muitos deles ficaram impressionados com a resistência da madeira e a possibilidade de desenhar com facas. Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. A aula acabou.
A saga continuou e foi necessário improvisar com o que tínhamos: bandejas de isopor. Nossas ferramentas passaram a ser palitos e lápis. Furaram, desenharam, experimentaram e Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii a aula acabou.
Chegou a hora da impressão.  Eram apenas 5 rolinhos para 30 e poucas crianças. A escola não comprou e foi o que pude tirar do próprio bolso. A cada imagem que era impressa uma explosão de alegria e encantamento acontecia. Ainda faltavam muitas crianças para imprimir suas gravuras. A falta de tempo me sufocava. Muitos ansiosos para verem sua imagem, gritavam meu nome, outros correndo, pois já tinham terminado. Tinha vontade de fugir. Piiiiiiiiiiiiiiii a aula acabou.
Ridículo. Era isso que me passava pela cabeça ao lembrar da qualidade da minha experiência  em um ateliê em comparação com o que era possível proporcionar aos alunos nas minhas aulas. Ridículo ter que me sujeitar e sujeitar os alunos a condições tão degradantes e empobrecedoras. Ridículo ter que me adequar a um tempo que aborta experiências significativas. Ridículo ter consciência que estou em sistema que foi construído pelas classes abastadas para dar o mínimo, do mínimo, já que a maior parte dos estudantes de escola pública, pobres, só precisa saber ler e fazer continhas. Arte é acessório, penduricalho. Arte não precisa de muito tempo, qualquer um faz. Não precisa de tanta atenção. Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii o tempo acabou.

23.5.13

Carta aos professores sobre a greve

Escrevi essa carta aos meus colegas de escola, especialmente aos que não aderiram o movimento, após me sentir desrespeitada por um governo que diz "do diálogo" e que quer transformar a cidade de São Paulo em "cidade educadora", porém pune o direito de greve que toda pessoa que trabalha tem, com ameaças de corte de salário.
_______________________________________________________________________

Caros colegas,
Estou escrevendo esta carta, pois foi o modo que encontrei para expressar o que estou sentindo nesse momento.
Desde o dia 29 de abril tenho comparecido a todas as assembleias, de lá para cá já foram sete. Vou até lá, não por achar divertido e prazeroso (se gasta condução, fica-se em pé por um bom tempo no sol e no frio e corre-se o risco de não se conseguir nada), mas por acreditar que são nesses espaços que podemos dar visibilidade à sociedade em relação ao caos e abandono que padecem as escolas públicas, além de incomodar o compromissos engravatados do prefeito e sua equipe e obrigar a mídia a tocar no assunto “educação pública”.
Mudanças não acontecem quando olhamos para nosso colega e reclamamos que falta material, falta respeito dos alunos e dos seus pais, faltam espaços adequados, falta profissionais especializados para os alunos de inclusão, falta saúde para aguentarmos o estressante dia a dia. Quem nunca fez uma reclamaçãozinha que atire a primeira pedra! Mas reclamar, infelizmente, não move nem a poeira de giz nos nossos aventais.
Em 3 de maio iniciou a greve. Naquele momento fiquei receosa, ponderei e pensei que talvez fosse melhor esperar mais negociações. Porém, com o andamento das negociações percebi que não haveria grandes avanços. Primeiro o governo sugeriu pagar os 11% referente à inflação, em 5 parcelas, depois em 3 parcelas, mas com a condição de que nós não reivindicássemos NADA nos próximos 3 anos. Poderemos nos calar se não podemos prever a inflação nos próximos anos? Naquele momento queria entrar em greve. Mas como se o grupo que faço parte não está? Será que meus colega professores estão contentes com o salário que tem?
Além disso, no meio desse processo, os dois principais sindicatos da educação se uniram. Algo inédito. Senti-me mais segura em participar do movimento, pois ficou claro o quanto a negociação havia se fechado e o quão urgente era a união.
Além de a negociação empacar, muitas mentiras foram proferidas: primeiro o secretário Callegari disse que nosso salário era de R$4500 reais, depois as diversas propagandas na tv (horário nobre da TV Globo) mentindo que Haddad nos concedeu aumento (sendo que só está cumprindo a lei da gestão passada). Será que essa é a postura de um prefeito que quer transformar a cidade de São Paulo em uma cidade educadora? Será democrático mentir sem nos dar espaço para reposta? Será educativo mentir para que a sociedade nos ache lunáticos, pois lutamos contra um governo bom que faz Virada Cultural, dá leite, instala 7500 pontos de ônibus modernos e que faz o favor de dar um aumento aos professores concedido na gestão passada?
Isso, porém não era tudo, Haddad e Callegari ao verem que não haveria mais alternativas, pois já haviam enrolado, desnegociado, mentido e nada acabou com a greve, então deixaram para o final o pior: fizeram circular um informativo sobre o apontamento de faltas, obrigando os diretores apontarem faltas justificadas e injustificadas aos grevistas. Usou a arma do medo. “Já que não aceitam as condições oferecidas pelo governo por bem, que seja por mal”,  devem ter pensando os dois.
Pensei então que sexta, dia 17 de maio, a greve acabaria, pensei que as pessoas iriam ficar com medo dos descontos e voltariam a trabalhar. Mas o que vi na assembleia foi diferente. Havia centenas de pessoas indignadas com a atitude punitiva do governo e decidiram continuar. Porém na minha escola, muitas pessoas que se comprometeram que iriam paralisar, voltaram. Será que o medo é maior do que a honra à palavra e o comprometimento com os demais colegas que paralisaram? Será que não vale a pena correr o risco por uns dias, do que 3, 4 anos ou a carreira inteira de desprestígio e defasagem salarial?
Chegada a assembleia de hoje (21/05), os dois presidentes dos sindicatos Claudio e Ismael, foram chamados para subir e negociar. Aguardamos com um misto de esperança e tensão. Ao descerem, confirmaram o pior: o desconto imediato dos dias parados, algo que não aconteceu nas gestões anteriores. Houve um desrespeito imenso ao direito de greve , pasmem, vindo de um partido que carrega o “trabalhador” no nome. Essa a meu ver foi a última cartada para enfraquecer e acabar de vez com nosso movimento. Porém, as pessoas decidiram manter a greve mesmo correndo o risco de não ter dinheiro para fazer mercado no fim do mês.
Você que teve a paciência de chegar até aqui, meu muito obrigado e lhe faço um convite, de coração: pense e reflita sobre seu cotidiano, sua relação com os colegas, o olhar que a sociedade tem para nossa profissão, as degradantes condições que somos obrigados a trabalhar, as mentiras que o governo está divulgando na televisão e sua atitude impiedosa ao tirar o sustento daqueles que paralisaram. Será que tudo isso e muito mais que poderá vir nos próximos anos, não serve como combustível para nos solidarizarmos com os colegas que terão 20 dias descontados e todos pararmos na sexta-feira? Sim todos temos compromissos, família e contas à pagar, porém corremos o risco daqui uns anos de as contas ultrapassarem o valor do nosso salário e a escola ser um lugar pior que cadeia.
Enfim, acredito que cada um carrega algum descontentamento/frustração com a profissão escolhida, esta que deveria ser a mais bela e valorizada de todas, pois ela é a base de todas as outras profissões.
Pensem com carinho. Abraços de esperança.
Carolina
            Profa Artes 

Greve

Professores reunidos em frente ao Gabinete do Prefeito, no Viaduto do Chá.
Olá leitores,
Desde o dia 03 de maio, os professores da prefeitura de SP estão em greve. Nossa pauta de reivindicações inclui: aumento de salário não inferior a inflação, diminuição do número de alunos por sala (hoje são 35), fim das terceirizações e abertura de novos concursos (pois não há profs suficiente na rede).
Porém, a Prefeitura vem se mostrando intransigente e não aceita nossas propostas.
Segue um vídeo, feito por um professor da rede, esclarecendo mais sobre os motivos da nossa greve.
Abraços,

https://www.youtube.com/embed/4abwkO9fB9U

20.5.13

Imagine um mundo sem...

Imagine um mundo sem pães no café, sem a vacina para a gripe, sem a luz e o telefone. 
Imagine um mundo sem leis, onde cada um faria o que quiser, matando e humilhando por dinheiro,
Imagine um mundo sem a possibilidade de reinventar as formas e sons, sem a arte e os artistas,
Imagine um mundo sem professores, e verá que nem padeiros, médicos, cientistas, engenheiros, advogados, juízes, artistas, músicos e o fruto de seus ofícios existiriam.

19.5.13

Endereço do Twitter


Agora estou mais ativa no twitter. Meu endereço @carolcortinove.
Para aqueles que querem apoiar a greve dos professores da cidade de SP, usem a TAG 

#helpeducsp. Abraços

4.3.13

Entrevista com Tião Rocha


Olá leitores do blog,
Ainda não tinha tido tempo para atualizar o blog em 2013, pois uma mudança muito importante aconteceu na minha vida na escola. Agora não fico no banco de reserva o tempo todo. Tenho agora 16 aulas atribuídas devido a uma aposentadoria, e o restante (9 aulas) continuo como professora substituta. 
Mesmo que não são todas as aulas, já é uma grande diferença, minha cabeça já está a mil na criação/elaboração das aulas.
Deixo aqui uma entrevista feita em 2007 com o educador mineiro Tião Rocha. Concordo com muito do que ele critica na escola formal. Vale a pena ler até o final!
6/11/2007 - 02h30

Para educador, escola formal não serve para educar

UIRÁ MACHADO
Coordenador de Artigos e Eventos da Folha de S.Paulo

"A Escola formal não está só na forma. Está dentro da fôrma. O pior é quando está no formol. É um cadáver." É assim que o educador mineiro Tião Rocha, 59, vê o ensino convencional, de cujos métodos e conteúdos se afastou há mais de 20 anos para experimentar processos alternativos de educação.
À frente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento desde 1984, Rocha sempre persegue "maneiras diferentes e inovadoras" de educar, alfabetizar, gerar renda. Ele distingue educação de escolarização e busca um sonho: escolas que sejam tão boas que professores e alunos queiram freqüentá-las aos sábados, domingos e feriados. "Se ninguém fez, é possível", diz.
Folha - Toda a sua história como educador é feita do lado de fora das escolas convencionais. Qual é o seu problema com a escola formal?
Tião Rocha - Se eu tivesse um analista, isso seria um prato cheio para ele. Comecei a ter problemas com a escola desde que entrei, aos sete anos.
Logo no primeiro dia de aula, no Grupo Escolar Sandoval de Azevedo, Belo Horizonte, a professora Maria Luiz Travassos nos levou para a sala de leitura, pegou um livro, "As Mais Belas Histórias", da dona Lúcia [Monteiro] Casasanta, e começou a ler: "Era uma vez um lugar muito distante, onde havia um rei e uma rainha (...)".
Eu levantei a mão e falei: "Professora, eu tenho uma tia que é rainha". Ela desconversou, pediu para eu ficar quieto. Ela prosseguiu a história. Depois que a interrompi duas ou três vezes, ela me mandou calar a boca e ir falar com a diretora, dona Ondina Aparecida Nobre.
Ela me deu um tranco, perguntou se eu queria ser expulso. A partir daí, eu sempre inventava coisa para matar a aula. Nunca tive uma escola boa. Nunca tive prazer na escola, mas sempre quis aprender.
Quando fui para a faculdade, estudei história e antropologia, fui resgatar a história da minha tia, que era rainha do congado.
Para pagar os estudos, eu precisava trabalhar. Fui dar aula e me dei conta de que, se eu achava aquilo chato, meus alunos também, porque eu era um reprodutor da mesma chatice.
Folha - E você conseguiu mudar?
Rocha - Não. Criava jeitos diferentes de trabalhar com os alunos, inovava, mas, no fim, era uma experiência muito reformista. Ela começou a ser transformadora quando aconteceu o fato com o Álvaro, minha primeira grande perda [o garoto, excelente aluno, se suicidou].
Aí eu falei: "Opa! Não adianta querer que os meninos aprendam história se eu não consigo aprender a história da vida deles". Então comecei a deixar de lado não só a forma mas também o conteúdo.
Por exemplo, pedia aos alunos para pesquisarem em casa: sobre cantiga de ninar, expressões populares, jogos etc. Um pai chegou para mim e disse: "Vim te agradecer, porque eu tinha um problema de relacionamento com meu filho, mas agora ele apareceu querendo saber sobre as brincadeiras de quando eu era criança e começamos a conversar, a brincar".
Eu nem sabia que aquele negócio estava ajudando a aproximar pais e filhos. Aí eu fui me libertando dos conteúdos cheirando a mofo e comecei a ver que estava partindo para uma outra coisa. Esse processo foi evoluindo na reflexão sobre o que é deixar de ser professor e virar educador. O professor ensina, o educador aprende.
Folha - E então o sr. começou seus projetos fora da escola, debaixo do pé de manga. Mas o sr. acha que a escola formal serve para alguma coisa?
Rocha - Ela serve para escolarizar. Ela dá um determinado tipo de informação e de conhecimento que atende um determinado tipo de demanda, um determinado tipo de modelo mental de uma sociedade que aceita, convive e não questiona.
Folha - Essa escola educa?
Rocha - Não. Ela escolariza. Uma coisa é falar em educação, outra é falar em escolarização. A maioria das pessoas que estão cometendo grandes crimes são pessoas escolarizadas. Então, que escola é essa? Para que ela serviu? Não ajudou nada, mas escolarizou.
E essa escola continua sendo branca, cristã, elitista, excludente, seletiva, conformada. Ela seleciona conteúdos, seleciona pessoas, mas não educa.
Folha - O que significa a escola ser branca?
Rocha - Por exemplo, eu nunca tive aula sobre os reis do Congo, mas tinha aula sobre todos os Bourbons, reis europeus.
Folha - E conformada?
Rocha - A escola não permite inovação. Ela é reprodutora da mesmice. A escola formal não está só na forma. Ela está dentro da fôrma. O pior é quando ela está dentro do formol. É um cadáver. O conteúdo da escola está pronto e acabado. Os meninos que vão entrar na escola no ano que vem, independentemente de quem sejam, aprenderão as mesmas coisas, do mesmo jeito. Aprendem o que alguém determinou que tem que ser aprendido.
Folha - O que está errado com o conteúdo?
Rocha - Recentemente, uma menina de nove anos, lá em Curvelo, virou para mim e disse: "Tião, vou ter prova e esqueci o que é hectômetro". Eu disse a ela que ninguém precisa saber o que é isso, que não se preocupasse, isso não cairia na prova. Perguntei se ela sabia o que era centímetro, metro, quilômetro. Ela sabia. "Pronto, tá bom demais, você vai viver a vida inteira mais 15 dias e não vai acontecer nada", disse para ela.
Passados uns dias: "Me ferrei. Caiu na prova e eu não sabia". Peraí: criança de nove anos tem que saber isso?
Isso é conhecimento morto. Mas se eu pergunto se eu posso ensinar outra coisa, não posso. O que posso é ensinar as mesmas coisas de um forma diferente. No conteúdo não pode mexer. O vestibular cobra. É um processo seletivo que vai determinando e excluindo, afunilando, dizendo que, para entrar aqui, precisa pensar desse jeito, nessa lógica. Do ponto de vista da escolarização, tá indo muito bem. Agora, se tá educando ou não, ninguém discute.
Quando uma criança é entrevistada e diz que é de determinado projeto porque quer ser alguém na vida, já sei que ela foi pessimamente educada. Um menino que aos 12 anos acha que não é ninguém na vida não tem mais auto-estima. Ele não é ele. Ela vai ser. É sempre um projeto adiado para o futuro.
Folha - Como deveria ser a educação?
Rocha - Um projeto de vida, não de formação para o mercado. A lógica da vida não é ter um emprego. Será que é possível construir um processo de uma escola que incorpore valores dignos, que passe a perceber que a ciência precisa estar condicionada a esses valores, que a tecnologia precisa estar condicionada a esses valores, que elas não podem ser determinantes dos valores humanos?
Ter analfabetos não pode ser um problema econômico, é um problema ético. A experiência que a gente vem desenvolvendo no CPCD é saber se é possível fazer educação de qualidade. Claro que é. Só que você tem que botar uma pergunta que a gente sempre faz. É o MDI: "de quantas maneiras diferentes e inovadoras eu posso"... O resto você completa com uma ação: educar, alfabetizar, diminuir a violência, gerar mais renda.
Quando a gente começa a fazer isso, aparecem 70 sugestões para alfabetizar, por exemplo. Vamos tentando uma por uma. Funcionou? Não? Risca. E vamos para a próxima. Quando chega na última, já tem mais tantas outras. Você não esgota o seu potencial de soluções para as crianças aprenderem.
Folha - Até onde vale criar soluções?
Rocha - Na educação, qual é a melhor pedagogia? É aquela que leva as pessoas a aprender. Na escolarização, a melhor pedagogia é aquela que dá mais sentido para quem a aplica.
O CPCD foi secretário da Educação de Araçuaí. Lá tinha um problema: os meninos demoravam duas horas no ônibus. O que a gente fez? Colocou educadores no ônibus. Qualquer secretaria de Educação pode fazer. É só sair da caixa.
Uma outra questão é o acesso aos livros. Há muitos anos, acompanhei a trajetória de dez crianças em Ouro Preto num período de seis, sete anos.
Como eu sei se um aluno é da primeira, da segunda, da terceira série? É pelo tamanho da pasta. No primeiro ano, traz até uma mala. Leva tudo. Depois, vai deixando. No ginásio [quinta a oitava série], eles não levam quase mais nada. No colegial, às vezes leva só uma canetinha.
Eu me perguntei se os livros perderam o encantamento ou se foi a escola que não soube mantê-los encantados. Juntei um monte de livros em baixo da árvore e mandava a meninada ir lendo. Em volta, deixava montinhos de sucata e escrevia uma placa: música, teatro, artes plásticas, literatura. Tudo que o menino lesse, tinha que ir numa direção e fazer música, teatrinho etc. É um jogo. Ler e transformar, do seu jeito.
Eles ficavam lá a tarde inteira. Vinha gente de longe. Agora, por que será que esses meninos nunca tinham entrado numa biblioteca da escola? Porque ele não tinha prazer em entrar na biblioteca. Quando ia ler um livro, tinha que dissecar a obra, classificar o texto, responder a dez perguntas sobre aquele negócio. Em baixo da árvore, ele não tinha que responder a pergunta nenhuma. Era prazer, e não dever. Os livros não perderam o encantamento, portanto.
Eu nunca li e detesto Machado de Assis. Por quê? Porque tive que fazer anatomia do livro. Achava um saco. Até hoje não consegui romper com isso.
Folha - Como enfrentar a falta de leitura?
Rocha - Faz chover livro na cabeça dos meninos. De todo jeito. Bornal de livros, algibeira de leitura, folia do livro, banco de livros, livro no ponto de ônibus. É igual propaganda. Como você quer que o cara não tome Coca-Cola? Vamos botar esse apelo para o livro. A gente foi tirando os meninos do estado de UTI. Vale tudo. É ético? É. Então, vale. Se nunca foi feito, a gente faz. Se errar, não tem problema. Temos que aprender.
Folha - Como você mexe no conteúdo? Tem um conteúdo básico?
Rocha - Claro. Tem que ter alguma coisa para começar. Precisa aprender os códigos de leitura, a a raciocinar e fazer cálculo, as quatro operações básicas. Mas não precisa saber o que é hectômetro.
Folha - Como diversificar? Ou por que diversificar?
Rocha - Há uns 20 anos, eu trabalhava bem no sertão. Tinha um projeto do governo para combater a doença de chagas na região. Parecia muito bom, as casas de adobe seriam substituídas por casas de cimento com condições de pagamento bem favoráveis. Mas não houve adesão dos moradores.
O que os engenheiros não percebiam é que as casas pareciam um forno de tão quente. O pessoal do projeto dizia: "É uma questão de adaptação". Eu respondia: "Não começa, não. A casa de adobe resolve muito bem a questão térmica. Por que não fazem casa de qualidade com adobe naquele sertão?". Eles disseram que não sabiam fazer, que não aprendiam isso na faculdade de engenharia.
Fiquei imaginando: eles não foram formados para fazer casas dignas para a população. Querem fazer em São Paulo e no sertão uma casa do mesmo tipo. Que lógica é essa? É a lógica do modelão.
Hoje, entrou na moda fazer casa de adobe, é ecológico. Engraçado. Antes, as pessoas faziam casa assim. Aí vieram, cortaram a tradição, impuseram o modelão e, agora, querem voltar ao que se fazia antes, mas travestido de conversa nova.
Folha - Você é contra todo tipo de forma universalizante?
Rocha - Como padrão único, claro.
Folha - Você é a favor de uma transformação constante?
Rocha - Da diversidade permanente.
Folha - De uma pedagogia específica para cada pessoa?
Rocha - Não. O que não pode é aprender uma única coisa, todo mundo igual. Mas não é "cada um faz o que quer". O que não pode é dar pesos desiguais, ou seja, negar ou excluir coisas em função de critérios que são absolutamente ideológicos.
É possível criar uma sociedade polivalente, diversificada? É, porque não foi feito ainda. Se ninguém fez, é possível. Isso é o que eu chamo de utopia. Utopia para mim não é um sonho impossível. É um não-feito-ainda, algo que nunca ninguém fez.
É possível aprender brincando? A escola tem que ser o serviço militar obrigatório aos sete anos ou pode ser prazerosa? Aí eu coloco um indicador: a escola ideal deve ser tão boa que professores e alunos desejem aulas aos sábados, domingos e feriados. Hoje, temos exatamente o contrário.
Os meninos estão no século 21 e a escola está Idade Média. A escola é a única instituição contemporânea que tem servos, tem serventes, pessoas que estão lá para nos servir. Nem em banco tem isso, lá são "auxiliares de serviços gerais".
Quando eu trabalhava na Universidade Federal de Outro Preto, por acaso eu virei pró-reitor. Acabei indo a uma reunião de pró-reitores com o secretário da Educação. Aquele discurso enfadonho estava me enchendo o saco, até que eu disse: "Nesse país, uma escola nunca teve crise de aprendizagem: a escola de samba.
Uma assessora do secretário disse que aquilo era inadmissível e perguntou se eu achava que a escola pública tinha que ser "aquela bagunça". Eu respondi: "Tô vendo que a sra. não entende nada de escola de samba. Na escola tem disciplinador, não tem? Pois na escola de samba tem diretor de harmonia". Entende? Uma coisa é cuidar da disciplina, outra coisa é cuidar da harmonia.
Folha - Como nasce uma nova forma de ensinar?
Rocha - Ou da dificuldade ou da pergunta. Somos movidos por uma pergunta, que vira um desafio, que vira uma encrenca. É possível educar debaixo do pé de manga? É possível criar agentes comunitários de educação? Vamos ficar pensando ou vamos aprender fazendo? Vamos aprender fazendo.
A primeira coisa que a gente fez foram os "Não Objetivos Educacionais". Porque formular um objetivo é muito simples: basta colocar um verbo na forma infinitiva e depois encher de lingüiça. O nosso verbo é o "paulofreirar", que só se conjuga no presente do indicativo: eu "paulofreiro", tu "paulofreiras" e por aí vai. Não existe "paulofreiraria", "paulofreirarei". Ou faz agora ou sai da moita. Ação e reflexão, agora.
As respostas vão sendo testadas e viram novas metodologias, pedagogias. Assim surgiu a pedagogia da roda, por exemplo, como um jeito de combater a evasão dos meninos. Não podemos perder os alunos, precisamos mantê-los interessados.
Folha - Seus métodos são tão abertos a ponto de aceitar que uma criança queira aprender na escola formal? Ou você quer acabar com a escola?
Rocha - Eu não quero acabar com a escola. Ela é muito mais importante do que parece. Ela tá longe de esgotar seu repertório, não usou nem 10% das possibilidades. Mas, para isso, ela precisa ter a ousadia de experimentar. É uma lástima dar às crianças só o que a escola formal oferece. É muito pouco.
As pessoas querem tirar os meninos da rua e levar para a escola --só se for para prender, porque para aprender não serve. É muito chato. Por que, em vez de tirar da rua, não mudamos a rua? Lugar de criança é na escola, na rua, em todos os espaços. Todos os espaços podem ser de aprendizado. Há experiências de cidades educativas muito legais.
Folha - Como é sua relação com os governos?
Rocha - Eu não vejo muita diferença. Todos eles estão dentro da mesma caixa, só muda a cor. A escola que tem agora não é muito diferente da de oito anos ou 20 anos atrás. Vai só pintando a fachada. A lógica, o processo, a metodologia muda muito pouco, no geral. A gente não consegue estabelecer alianças com os governos porque incomoda pensar fora da caixa. Se incomoda, são refratários. Então a gente vem aprendendo a fazer política pública não-governamental.

retirado de: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u348104.shtml